A criação de perfis a partir dos dados de saúde ainda é uma preocupação nas sociedades ocidentais. Nos EUA, antes da decisão do Supremo Tribunal que suspendeu o direito ao aborto, o Surveillance Technology Oversight Project (STOP) revelou várias tecnologias de vigilância ameaçadoras para as grávidas que possam procurar serviços e informação sobre o tema. No relatório “Pregnancy Panopticon: Abortion Surveillance After Roe”, o STOP aborda o perigo das pesquisas e das compras online, das mensagens e conteúdos colocados em redes sociais, dos dados de localização ou de outros dispositivos, em que “todos os aspectos da vida digital das grávidas serão perscrutados, examinados em busca de quaisquer indícios de que elas procuraram (com sucesso ou não) interromper a gravidez”.
Em teoria, a sociedade da ciber vigilância descura a presunção de inocência, todos são potenciais criminosos. Na prática, há conflitos sempre latentes, numa sociedade em mutação. A tensão não é atenuada mas, pelo contrário, generaliza-se. Exemplo deste modelo de “guerra em todo o lado” – como a denominava Frederic Megret em “War and the Vanishing Battlefield” – são as vídeo câmaras de vigilância em território urbano, com as suas fragmentações raciais e sócio-económicas e em que “a lente racializada da vigilância permite ter indivíduos como alvos e a re-inscrição de fronteiras para que ‘o corpo se torne campo de batalha”.
Isto porque, na realidade, se assiste a um “desaparecimento do campo de batalha” delimitado, como nota a Real Life. “Em vez de zonas de conflito definidas, todo o ambiente fica saturado de ameaças; a violência pode explodir espontaneamente em qualquer lugar. Os sistemas de vigilância privados aparecem cada vez mais necessários para estabelecer zonas seguras contra as ameaças omnipresentes. Mas a implementação de tais sistemas e a criação de tais zonas apenas reforçam a durabilidade da ameaça. Os dispositivos têm como premissa garantir um espaço e uma vida livre de conflitos, mas, em vez disso, testemunham a presença permanente de um campo de batalha que não conhece limites”.
Isso ficou visível com o ataque ao Capitólio, em Washington (EUA), e a enorme partilha das imagens de “guerra” num país em situação de paz.
Como escreveu a revista Reason, “desde que se tenha um telemóvel, o governo pode rastreá-lo”. O FBI requereu às operadoras os dados de todos os utilizadores de telemóveis presentes nas redondezas nesse dia 6 de Janeiro, conseguindo os metadados das conversas ou das mensagens, com a geolocalização (mas não o conteúdo). A administração Trump usou a mesma estratégia para, após aceder a uma base de dados comercial com as movimentações dos telemóveis, usá-la para rastrear imigrantes.
Na Europa, o tratamento aos refugiados têm demonstrado essa tendência, mesmo antes da invasão da Ucrânia pela Rússia. “Certas comunidades já marginalizadas, desprivilegiadas, estão a ser usadas como cobaias, mas a preocupação é que todas essas tecnologias sejam implementadas contra a população em geral e normalizadas”, dizia Petra Molnar, directora do Refugee Law Lab da Universidade de York, em 2021, após ter visitado campos de refugiados em Lesbos. Ela percebeu que agências europeias de controlo de estrangeiros estavam “a usar a Grécia como campo de testes para todos os tipos de tecnologias”, desde a vigilância aérea à IA, polígrafos e pontuação de riscos (“risk scorings”), e “também estamos a ver a recolha de grandes quantidades de dados para todas essas bases de dados que a Europa está a usar ou usará para uma variedade de fiscalização de fronteiras e policiamento em geral”, como está a ocorrer com a Europol.
Em síntese, como Giorgio Agamben antecipava em 2018, há dispositivos como o controle das impressões digitais, ou o escaneamento que fazem nos aeroportos, que foram adotados para controlar os criminosos e agora são aplicados a todos. Da perspectiva do Estado, o cidadão transformou-se num terrorista virtual. De contrário, não se explica o cúmulo de câmaras que nos vigiam em toda a parte. Somos tratados como criminosos virtuais. O cidadão é um suspeito, numerado, como em Auschwitz, onde cada deportado tinha o seu número”.
Por- Pedro Fonseca