Curador Bonaventure Ndikung reflecte sobre a edição deste ano da Bienal de Fotografia de Bamako
Prevista para novembro do ano passado, a 13ª edição dos Encontros de Bamako teve sua realização adiada para outubro de 2022. Desde 1994, o evento, organizado pelo Ministério da Cultura de Mali e pelo Instituto Francês, tem como missão proporcionar trocas entre fotógrafos africanos e da diáspora.
A chamada Encontros de Bamako terá, pela segunda vez consecutiva, o curador camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung como director artístico, reunindo agora uma rede actuante em diversas partes do mundo: Liz Ikiriko (artista, curadora assistente da Art Gallery York University), Tandazani Dhlakama (curadora assistente de Zeitz MOCAA, Cape Town), Meriem Berrada (diretora artística de MACAAL, Marrakesh) e Akinbode Akinbiyi (artista e curador independente).
Com o título emprestado da obra do pensador do Mali Amadou Hampâté Bâ (1901-1991): Maa ka maaya ka ca a yere kono [As pessoas da pessoa são múltiplas dentro da pessoa], qualquer semelhança com os versos de Fernando Pessoa (“Não sei quantas almas tenho”) é mera ilusão: contrariamente aos sentimentos de solidão e exílio decorrentes da alternância de identidades do poeta português, esse aforismo celebrado na África negra refuta a melancolia da fragmentação. Ou melhor, abraça a potencialidade do pluralismo. Seguindo sua trilha, conceitos de “multiplicidade”, “diferença” e “vir-a-ser” prometem levar a Bamako questões relativas a extrativismo colonial e “patrimônios”.
Nascido em 1977 em Yaoundé, na República dos Camarões, Ndikung chega na Alemanha já com 20 anos. A formação em Biotecnologia médica pela Universidade Heinrich-Heine, em Dusseldorf, seguida de um pós-doutorado em Biofísica pela Universidade de Montpellier, na França, conferem a esse orador carismático uma trajetória tão surpreendente quanto fecunda para sacudir a morosidade disciplinar das artes, subjugadas às leis de um mercado que vem absorvendo a pauta identitária com a mesma sede extrativista que caracteriza os empreendimentos financeiros. Sua posição, clara e contundente, pode ser conferida no ensaio Ceux qui sont morts ne sont jamais partis: la préservation de la suprématie, du Musée Ethnologique et les complexités du Forum Humboldt [Aqueles que morreram nunca se foram: a preservação da supremacia, o Museu Etnológico e as complexidades do Fórum Humboldt] (Archive Books, 2018). Ndikung tem encabeçado as discussões em torno da controvertida criação do Fórum Humboldt, que reúne os acervos do Museu Etnológico e do Museu Dahlem de Arte Asiática em um antigo palácio prussiano parcialmente reconstruído.
A singularidade dessa voz em meio à globalização do trabalho curatorial consiste em saber modular uma crítica mordaz com a elegância e sensibilidade de grandes poetas e músicos, tempero incomum entre ativistas de plantão. Ndikung desenvolve numerosas atividades, inclusive acadêmicas. Integrou a equipe do curador Adam Szymczyk na documenta 14, em Kassel e Atenas, em 2017; e vem trabalhando na lendária mostra de Sonsbeek, em Arnheim, na Holanda, repensando esculturas em escala expandida. Inicialmente prevista para 2020, a nova estrutura do evento, por conta da pandemia, se estenderá até 2024.
Ndikung fundou em 2009 a SAVVY Contemporary, espaço independente e experimental em Berlin. Em pouco tempo, a programação, voltada para a inscrição cultural de práticas artísticas anticoloniais, mudou a paisagem institucional da cidade, iniciativa que lhe rendeu a Ordem do Mérito de Berlim. Ndikung acaba de ser nomeado para a direção da prestigiosa Haus der Kulturen der Welt – HKW [Casa de Cultura da Terra], decisão que deverá exigir rearranjos estratégicos para não esvaziar o laboratório de formas-ideias, que inaugurou uma nova sede. Afinal, apesar de contar com uma generosa equipe de colaboradores, é difícil imaginar um/a/e sucessor/a/e à altura, capaz de insuflar o mesmo sentido de celebração e comunidade.
Lisette Lagnado é jornalista, crítica de arte e curadora entrevistou recentemente Bonaventure Soh Bejeng Ndikung . Pode ler a entrevista completa aqui.