Antes de “Black Panther” (2018) ter reavivado junto de um grande número de espectadores de cinema o desejo de ver um africano a protagonizar um filme de ficção científica, um conjunto de personalidades já tinha iniciado uma longa batalha contra o “branqueamento” do futuro no cinema, na literatura, pintura, música e outras expressões artísticas e culturais.
Sun Ra, nascido como Herman Blount, em 1914, no Alabama, foi um dos músicos que nesta época mais criticou a supremacia branca nos Estados Unidos da América. Desde cedo estudou música e, durante um período de convalescença na infância, começou a compor em casa no seu piano. Foi também um dos primeiros objectores de consciência negros na Segunda Guerra Mundial e chegou a ser preso.
Nos anos 50 Sun formou a Arkestra, a banda que viria a torná-lo num ícone do Jazz mundial. Foi nessa altura que começou a declarar publicamente que tinha sido raptado por extraterrestres e vindo de Saturno para libertar os africanos do racismo e da opressão. A sua banda vestia mantos egípcios e ostentava enormes artefactos futuristas sobre a cabeça. Sun Ra chegou a participar em vários filmes que marcaram o início do afro-futurismo, entre os quais “Space is the Place” (1974).
Em 1994, Mark Dery, académico e crítico cultural americano, lançou o seu ensaio “Black to The Future”, (incluído no livro “Flame Wars”) onde surge pela primeira vez o termo Afro-futurismo — “Ficção especulativa que trata temas afro-americanos e aborda as preocupações afro-americanas no contexto da tecno-cultura do século XX (…) pode, por falta de melhor termo, ser chamada de afro-futurismo”
Ao longo do ensaio, Dery questiona a influência de um passado marcado pela separação de famílias nos mercados de escravos dos Estados Unidos e a consequente dissipação da história familiar, levantando a questão — “Pode uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas pela busca de traços legíveis da história, imaginar futuros possíveis?”, e complementa esta ideia com outro factor que ainda hoje limita a participação dos afro-americanos no espaço da ficção científica, “(…) Não terá sido o estado irreal do futuro já dominada pelos tecnocratas, futurologistas, visionários, e cenógrafos – brancos para o Homem – que projectam as nossas fantasias colectivas?”
Mark Dery
Presente neste ensaio, com uma generosa entrevista, onde Dery o questiona sobre as causas do “branqueamento do futuro” nos Estados Unidos, Samuel Delany, escritor afro-americano de romances incluindo “Babel-17” (1966), “The Einstein Intersection” (1967), vencedores do Prémio Nebula, acrescenta que o acesso à tecnologia tem uma influência directa na participação de escritores africanos na concepção de futuros possíveis.
Acerca disso, acrescenta — “(…) tecnologia era como um placard na porta a dizer, “Clube dos Rapazes! Raparigas, fora. Negros e Hispânicos, e pobres no geral, ponham-se a andar!” — Esta afirmação torna explicita a relação entre as imagens que se propagam nas nossas mentes sobre classes e povos economicamente desfavorecidos, e como os preconceitos provenientes desse imaginário, se traduzem em escassas representações de africanos em futuros possíveis.
Contudo, como uma pequena lanterna a luzir no breu, Delany diz-nos, ainda em “Black to The Future”, que as coisas estão a mudar, que já naquela altura a tecnologia começava a ultrapassar as barreiras sociais e económicas, leitores de ficção científica afro-americanos proliferavam nas suas convenções e dessas aparições surgiriam naturalmente novos escritores capazes de sustentar o género e contribuir com o seu engenho e criatividade.
Sun Ra, Mark Dery, Samuel Delany, deram corpo ao conceito de afro-futurismo, mas muitos outros influenciaram e continuam a influenciar o rumo deste movimento. O artista plástico e teórico de Nova York, Basquiat, Octavia E. Butler, Rammelzee, George Clinton, Jannelle Monàe são outros gigantes do afro-futurismo que tornam cada vez mais provável o “avivamento” desta expressão da cultura africana nas várias disciplinas da arte.
Depois de percorrer esta cronologia é provável que surjam, para quem lê este artigo em Moçambique, algumas questões relevantes — Seremos também parte deste movimento? Em que medida este afro-futurismo já revelou a nossa alma e identidade?
Voltando a “Black Panther”, que despoletou não apenas este, mas muitos artigos em jornais e blogs bem conhecidos, diria que podemos, sim, participar neste movimento, mas de uma forma diferente — a nossa mais valia é estar cá, em contacto diário com a cultura africana, senti-la em cada rua, em cada bairro, nas pessoas com quem convivemos, e a possibilidade de projectar de uma forma mais genuína o futuro imaginado por um africano.
Ana Queiroz