Diário de Benga, semana 3

Pequisa MFF, Benga, Aldeia do Futuro: 

Diário, semana 3:  Choque Epistemológico

Nos primeiros dias que eu cheguei em Benga, encontrei uma criança que devia ter uns 3 anos de idade. Para a minha surpresa, ela tinha um preservativo na boca que tentava encher de ar como se fosse um balão. Esta criança deve ter apanhado um preservativo no chão (deduzi sem pensar muito).

Então, movido pelo choque, tentei dizer a criança para largar o balão num instinto paterno idiota. Mas a criança devia estar a ver um tipo com uma figura estranha que falava uma língua que ela não percebia, então ela saiu a correr (aterrorizada) e eu fui atrás até eu ver ela entrar dentro de uma casa sem largar o preservativo.

Não persegui mais a criança, parei por ali. Achei que dentro da casa um adulto iria prestar atenção na criança que já chorava e notar o preservativo que ela trazia consigo. Com uma sensação de dever cumprido, continuei a minha caminhada. 

Alguns dias depois, o meu vizinho, da janelinha da sua banquinha, oferecia preservativos a crianças.   Percebi pelos gestos que não era a primeira vez que iam  pedir esse ‘brinquedo’ que lhes dava tanta alegria. 

Foi, então, quando percebi o que teria acontecido naquele dia. Diferente do meu vizinho que oferecia um brinquedo, eu era o vilão que tentou tirar o brinquedo da criança, e a única razão para eu não ter imaginado que o preservativo não poderia ter mais nenhum outro uso senão aquele que os inventores prescreveram, é a minha percepção. Ela é o resultado de uma construção sociocultural que aquela criança não tinha (na sua inocência). 

Essa maneira de ver o preservativo, funcionava também para as redes mosquiteiras que depois de inutilizadas serviam de pequenas cercas ou ganhavam outras múltiplas funções que conseguiam recriar para diversas coisas. 

A partir daí comecei a observar com mais atenção e a agir com menos pretensão; a falar cada vez menos (reduzindo-me essencialmente a perguntas); fui tirando notas para não esquecer e, assim, de forma implícita, fui seduzido pelo lugar e a pesquisa começou antes que eu estivesse consciente dela.

Mais tarde, notei que este episódio, era periférico de algo ainda mais profundo, que o contexto de onde eu vinha, tinha-me sistematizado com percepções fragmentadas e unidimensionais (a maneira do René Descartes) produzindo uma cultura tão rígida quanto às nossas cidades ortogonais, (resultante de uma geometria euclidiana, que está mais do que matematicamente provada como incapaz de representar todas as dimensões da realidade).

 Benga sugeria-me olhar as coisas como algo com potencial para mais do que aquilo que elas tinham sido feitas, integrando mais possibilidades do que eu estava preparado para perceber. Este lugar fez-me transcender.

 O inimaginável é aquilo que nós não temos as imagens de base com as quais podemos compor as novas imagens. Isso é o que esta pesquisa sugere, propor referências locais com potencial de transcender, criar novas perspectivas.

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